segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

As Obras de Deus e os Decretos Divinos em Geral - Johhanes Wollebius




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 (1)
Até agora Deus foi considerado em si mesmo. Agora ele também precisa ser considerado em suas obras.
1. Isto inclui tanto as obras essenciais como as pessoais.
2. As obras essenciais são aquelas que são realizadas por toda a Santíssima Trindade operando como sendo apenas um Ser.
3. As obras pessoais são aquelas que são peculiares a uma pessoa em particular.
4. Tanto as obras essenciais como as pessoais incluem aquilo que afeta Deus somente [ad intra] e aqueles efeitos são percebidos fora de Deus [ad extra].
5. A primeira espécie não tem outro objeto [terminus] além de Deus. [A esta espécie pertencem] tais assuntos como a inteligência pela qual Deus conhece a si mesmo, a geração do Filho e a procedência do Espírito Santo.
6. As obras da segunda espécie têm alguns outros objetos além da Santíssima Trindade. Tais como a predestinação, criação e coisas semelhantes que concernem às criaturas como objetos externos a Deus.

PROPOSIÇÕES

I. A mesma obra externa é tanto pessoal como essencial de diferentes pontos de vista. Assim, a encarnação de Cristo, em seu aspecto eterno [inaugurativo] é uma obra essencial, comum à toda a Trindade; em seu aspecto histórico [consumativo] ela é uma obra pessoal apenas do Filho. Embora o Pai e o Espírito sejam causas da encarnação, somente o Filho tornou-se encarnado. Do mesmo modo, embora a criação, redenção e santificação são obras de toda a Santíssima Trindade, todavia, de um ponto de vista, elas podem ser chamadas de pessoais. O Pai é chamado criador, porque ele é, como era a origem [fons] da operação da Trindade, e o Filho e Espírito Santo agem pelo Pai. O Filho é chamado redentor, porque ele consumou a obra da redenção assumindo a natureza humana. O Espírito Santo é chamado santificador, porque ele é enviado pelo Cristo como um confortador e santificador.
II. As obras externas são indivisíveis ou comuns a todas as pessoas. Desta proposição segue do que foi declarado acima; uma vez que a essência é comum a todas as pessoas, as obras essenciais também precisam ser comuns a todos os três.
III. Toda obra específica sempre preserva o mesmo princípio essencial, causa eficiente e efeito.

(2)
1. As obras de Deus que tem a sua realização fora dele são tanto imanente e interna, como exposta e externa. As obras imanentes e internas de Deus são aquelas que recebem lugar dentro de sua divina essência, e deste modo são os decretos de Deus.

PROPOSIÇÕES
I. Nem todas as obras cujo objeto é fora de Deus [ad extra] é uma obra externa. Um decreto de Deus é ad extra naquilo que se refere à criatura ou alguma coisa além de Deus, mas ela é interna naquilo que ela permanece em toda a essência de Deus.
II. As obras imanentes e internas de Deus são as realidades [res] não diferem da essência de Deus. Tudo o que estiver em Deus é Deus, como apresentamos acima como uma consequência da simplicidade da essência divina; e como essência e ser [essentia et esse] não são diferentes em Deus, assim, em sua vontade e o ato da vontade não são realidades [realiter] diferentes.

(3)
Um decreto é um ato interno da vontade divina, pelo qual ele determina, da eternidade, livremente, com absoluta certeza, aqueles assuntos que acontecerão no tempo.

PROPOSIÇÕES
I. Os decretos são chamados “o plano definitivo” (At 2:23), “a mão e plano de Deus” (At 4:28), “o beneplácito de Deus” (Ef 1:9), e a eterna providência de Deus. Eles são chamados de “eterna providência” em distinção da atual providência que não é outra senão que a execução dos decretos de Deus.
II. Eles também são chamados de vontade de Deus, e o que Deus intenta fazer [voluntas beneplaciti]. Na realidade, o decreto é a própria vontade de Deus; mas, para o propósito de ensino a vontade é tratada como a causa eficiente, e o decreto como o efeito. Outra nomenclatura acerca da vontade pode ser adotada para vários propósitos e várias distinções são feitas pelos teólogos; a distinção entre o que Deus intenta fazer e o que ele nos quer fazer [voluntas beneplaciti et signi], entre vontades antecedente e consequente, absoluta e condicional, oculta e revelada. Estas não são divisões reais, ou partes da vontade divina de Deus, pois de fato, ela é propriamente chamada àquilo que Deus intenta fazer [voluntas beneplaciti] porque pela sua completa liberdade e beneplácito, ele decretou tudo que acontecerá. O mesmo é “antecedente” porque ele existiu antes das coisas criadas, e foi contado com Deus desde a eternidade. Ele é chamado “absoluto” porque se baseia unicamente na boa vontade de Deus e não de nada no tempo, e finalmente, ele é chamado de “oculto” porque nem anjos, ou homens entendem-no sem auxílio [a priori]. Mas como está numa cantiga popular “Ele comanda e ele proíbe, permite, divide e completa” possa ser vagamente chamado pela designação da vontade divina. Assim como os editos de um magistrado são chamados de sua vontade, do mesmo modo a designação da vontade pode ser dada aos preceitos, proibições, promessas e bem como aos fatos e eventos. Assim, a divina vontade também é chamada daquilo que Deus quer fazer [voluntas signi], pois ela significa o que é aceitável a Deus; o que ele quer fazer a nosso favor. O decreto é chamado de “consequente” porque ele segue aquela vontade que antecede a eternidade; ele é “condicional” porque os mandamentos, proibições ou desobediência estão ligados a ele. Finalmente, ele é chamado de “revelado” porque é o modo explicado na palavra de Deus. É necessário observarmos que este espécie de discussão não postula outra realidade diversa, ou contraditória, como se fossem vontades de Deus.
III. Ao lado da vontade de Deus não há causas que podem ser contrárias a sua vontade. De fato, muitas coisas podem ser contrárias àquilo que Deus quer [voluntas signi], no entanto, elas se conformam ao plano divino [voluntas beneplaciti]. Deus não criou o pecado do homem, pelo contrário, mais estritamente ele o proibiu. Contudo, ao mesmo tempo ele o decretou de acordo com a esta vontade [beneplaciti] como um meio de revelar a sua glória.
IV. Tanto o bem como mal, entretanto, resultam do decreto e vontade de Deus; primeiro ele causa, e depois ele permite.
V. Contudo, o decreto e vontade de Deus não têm o mesmo sentido como causa do mal ou do pecado, embora tudo o que Deus decreta assume a posição de necessidade. Desde os males que são decretados, não efetivamente, mas permissivamente, o decreto de Deus não é a causa do mal. Nem são os decretos de Deus a causa do mal sobre a explicação da inevitabilidade de seu resultado, ou mesmo que eles conduzam os resultados não por uma necessidade coerciva, mas meramente por algo imutável.
VI. A inevitabilidade [necessitas] dos decretos de Deus não destrói a liberdade nas criaturas racionais. A razão é que a necessidade não é uma necessidade da coerção, mas da imutabilidade. Que a queda de Adão aconteceu pela necessidade com respeito a um decreto divino; todavia, Adão pecou livremente, nem ordenado, nem coagido, ou influenciado por Deus; de fato, ele teve a mais estrita advertência para não pecar.
VII. A inevitabilidade dos decretos de Deus não destrói a contingência das causas secundárias. Muitos eventos que acontecem pela necessidade com respeito aos planos de Deus são contingentes com as causas secundárias.
VIII. Não existe uma causa ativa [causa impulsiva] além da absolutamente livre vontade e prazer de Deus capaz de determinar os decretos divinos.
IX. O propósito [finis] dos divinos decretos é a glória de Deus.
X. Um decreto de Deus é singular e simples em si mesmo; nele não existe algo que seja anterior ou posterior.
XI. Com respeito a todas as coisas decretadas, deve ser especificado que na ordem em que ocorrem, Deus diz ter decretado quais deveriam ocorrer.

Tais questões como se Deus primeiro decretou isto ou aquilo, ou se ele decretou primeiro e o fim, ou os meios, são tolice. Desde que um decreto de Deus é em si mesmo um ato absolutamente simples, não há nela nem antecedente ou posterior; apenas com respeito às coisas decretadas podem ser especificadas. Com este entendimento podemos dizer que Deus decretou (1) criar o homem, (2) dar-lhe a sua imagem, mas de um modo que pudesse se perder, (3) permitir a queda, (4) e deixar alguns dos caídos entregues a si mesmos, mas eleger outros e preservá-los para a vida eterna.

Traduzido de Johannes Wollebius, Compendium Theologicae Christianae in: John W. Beardslee III, Reformed Dogmatics: seventeenth-century Reformed Theology through the Writings of Wollebius, Voetius, and Turretin (Grand Rapids, Baker Books, 1977).

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Glória ao Rei dos Reis...

Por Suzy



Nas proximidades havia pastores que estavam nos campos e que     durante a noite cuidavam dos seus rebanhos.

E aconteceu que um anjo do SENHOR apareceu a eles e a glória do SENHOR reluzindo os envolveu; e todos ficaram apavorados.

Todavia o anjo lhes revelou: "Não temais; eis que vos trago boas notícias de grande alegria, e que são para todas as pessoas:

Hoje,  na cidade de Davi, vos nasceu o Salvador, que é o Messias, o SENHOR!

Isto vos servirá de sinal:encontrareis um recém-nascido envolto em panos e deitado sobre uma manjedoura".

E no mesmo instante, surgiu uma grande multidão do exército celestial que se juntou ao anjo e louvaram entoando:

"Glória a Deus nos mais altos céus, e paz na terra às pessoas que recebem a sua graça!"(Lc 2:8-14)



O cenário "in loco" do nascimento de Jesus Cristo, é de inexorável humildade, mas é necessário entendermos que não só o local de seu nascimento se enquadra nessa perspectiva, ou seja, sendo a segunda Pessoa da Trindade vir ao mundo nascido de mulher já seria de tamanha humildade.

Entretanto, encontramos ainda no decurso desse nascimento um ambiente carente,  família pobre, e em uma nação subjugada. No entanto, era o momento certo, a família certa, o país ideal para o nascimento do Rei da Glória, era o tempo de Deus, como lemos em Gl 4:4 " Todavia quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido também debaixo da autoridade da Lei"; todos esses fatores foram favoráveis a vinda do Messias, Deus estabeleceu ao longo dos séculos o cenário favorável a "plenitude dos tempos".

Nesse meio tempo, a glória de Cristo se manifestou em meio a tão profunda humilhação: " ...e a glória do SENHOR reluzindo os envolveu...". Naquela manjedoura nasceu o Filho de Deus, o Senhor do céu e da terra, e sua glória e majestade é de eternidade a eternidade.

Solus Christus!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Sem a Graça de Deus Não Tem Graça

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Por Denis Monteiro


A Tese 62 de Lutero diz: “O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus”. É correto afirmar que a graça de Deus abrange todas as coisas, pois para qualquer coisa existente, se não houvesse a graça de Deus não teria a mínima graça.

A graça e a salvação

A graça de Deus é o cerne do Evangelho o qual existe desde o Antigo Testamento (Gl 3.8). Sendo assim, a salvação sempre foi apregoada pela graça de Deus.

A graça de Deus, segundo alguns, completa aquilo que faltava no pecador. Essa visão é totalmente errônea, pois o Homem, sendo um pecador, não há nada nele que possa ser utilizado se não fora dado pela própria graça de Deus. Como Deus nos diz: Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite” (Is 55.1). Veja que a graça é oferecida aos que não tem dinheiro, e não aos que não tem dinheiro suficiente.

A graça de Deus salvadora é concedida a todos quantos por quem Seu Filho morreu para remir toda a iniquidade, e purificar para si um povo todo seu, zeloso de boas obras (Tt 2.14). E esses mesmos a quem a graça se revela são os mesmos que Deus estava irado, os quais, segundo o apóstolo, não eram justos, não entendiam, não buscavam a Deus, não faziam o bem e nem havia um sequer que o fizesse (Rm 3.10-12). Ou seja, a graça de Deus ninguém merece, mas Deus nos concede pela sua misericórdia, onde que, Cristo satisfez a ira de Deus em nosso lugar. Portanto, só reconheceremos a graça de Deus na salvação quando entendermos realmente quem é a humanidade: A imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice” (Gn 8.21); Eis que eu nasci em iniquidade, e em pecado me concedeu minha mãe” (Sl 51.5); Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós” (Is 53.6).

Sendo assim, podemos ver que:

- A graça de Deus deve ser retratada no contexto de que nós já fomos inimigos de Deus, merecedores do inferno eterno.
- A graça de Deus age sem ver o pecador com mais ou menos merecimento, mas trata a pessoa sem qualquer referência de merecimento e segundo a bondade de Deus infinita.
- A graça de Deus não é meritória. Não fizemos nada para merecê-la. Éramos devedores de Deus, devíamos um valor altíssimo, mas Deus perdoou a nossa dívida.
- Como já vimos, não fizemos nada para que a merecesse. Mas recebemos a graça de Deus para que façamos boas obras. As nossas boas obras são frutos desta graça Divina. Sendo assim, fomos justificados pela graça de Deus e não pelas obras (Rm 3.24).
- A graça não passou a existir com a vinda de Cristo, porque a graça é eterna, como o próprio Paulo diz: não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos, e manifestada, agora, pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus, o qual não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho” (2Tm 1.9,10).
- O fato da graça de Deus ser não meritória mostra claramente que Deus é soberano, não sendo obrigado a derramar essa graça sobre todos. Pois, se Deus fosse obrigado a derramar a graça sobre toda a humanidade, logo, a graça já não seria graça.
- Por fim, a graça de Deus atua em toda a nossa salvação. Pois fomos eleitos pela graça de Deus (Rm 11.5), a nossa regeneração foi pela graça (Ef 2.5; Tt 3.5-7), a nossa redenção (2Co 8.9; Ef 1.7), nossa justificação (Rm 3.24), de fato, toda a nossa salvação é pela graça de Deus (Ef 2.8).

A graça comum

Alguns teólogos reformados negam a graça comum de Deus, por entenderem que; se Deus age graciosamente (graça providencial) Ele deverá amar todas as pessoas indistintamente. Outros negam o termo graça comum pelo fato da Bíblia não mostrar que Deus dê a sua graça aos ímpios não eleitos. Mas isso é brigar por definição de termo, sendo que, o fim é o mesmo. Nós não podemos negar que Deus dê benefícios para todos os povos, sendo que, há pessoas entre esses povos que não serão salvas, mas são beneficiadas pela graça de Deus. Como vimos acima, graça é uma dadiva de Deus a um pecador que não merece nada de Deus. Sendo assim, todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus, e mesmo assim, Deus concede dons e talentos a cada pecador, como esses textos nos mostram:

E Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e têm gado” (Gn 4.20);

E o nome do seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e órgão” (Gn 4.21);

E Zilá também deu à luz a Tubalcaim, mestre de toda a obra de cobre e ferro; e a irmã de Tubalcaim foi Noema” (Gn 4.22);

Em meio ao endurecimento progressivo do pecado – poligamia e a vingança grosseira e injusta – Deus concede dons e talentos quanto a extensão do mandato cultura, desde agricultura animal (Gn 4.20) às artes (Gn 4.21) e às ciências (Gn 4.22). Como Deus concede tais graças à uma descendência ímpia? Não sei, mas isso se chama graça comum. Da mesma forma como mostra o nosso Senhor Jesus que Deus “faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos” (Mt 5.45).

Sendo assim, não podemos confundir graça comum com a graça salvadora mostrada acima, como nos mostra Michael Horton:
A graça comum beneficia a humanidade caída em termos da presente época, mas não traz a era futura, ou seja, não faz acontecer o reino de Deus. Não salva os malfeitores do juízo vindouro, nem redime a arte, a cultura, o estado ou as famílias. Diferente da graça salvadora. A graça comum se restringe ao mundo atual até o dia do juízo e não impedirá a mão de Deus de agir com justiça naquele temível dia.[1]

Quanto a nós cristãos, não devemos menosprezar a graça comum, pois além de recebermos a graça salvadora nós temos a graça comum em nossas vidas antes mesmo de aceitarmos a fé. Mas a questão é que todos os nossos atos, frutos desta graça comum, não devem ser para o nosso prazer último. Mas que os nossos atos devem ser feitos visando à glória de Deus, mostrando em nossos feitos uma vida redimida pelo Santo Espirito de Deus.

Certa feita um sapateiro perguntou a Lutero “de que forma poderia servir a Deus da melhor maneira”, Lutero respondeu: “Faça um bom sapato e venda por um preço justo”. A graça comum que recebemos antes de nossa conversão, agora, depois de converso, deve ser mostrada em dignidade e em conformidade com o Evangelho.

Se vestindo da graça

Porque a graça salvadora de Deus se há manifestado a todos os homens. Ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, e justa, e piamente.” - Tito 2.11,12

Vimos sobre a graça de Deus na salvação, como ela atua na salvação do pecador e vimos sobre a graça de Deus como providência geral na humanidade. Agora, tentarei mostrar a graça de Deus na vida dos eleitos. O texto acima nos mostra que a graça de Deus nos ensina a dizer “não” para a impiedade e para as paixões mundanas, para poder viver no século presente uma vida piedosa. No entanto, quero focar em cinco características que são relacionados à graça: a gratidão, o contentamento, a humildade, a paciência e o perdão.[2]

A) Gratidão

Entrai pelas portas dele com gratidão, e em seus átrios com louvor; louvai-o, e bendizei o seu nome. Porque o Senhor é bom, e eterna a sua misericórdia; e a sua verdade dura de geração em geração.” - Salmo 100.4,5

A primeira característica que deve fluir por causa da graça de Deus é a gratidão a Ele. Tudo o que somos e tudo o que fazemos são frutos da graça de Deus em nós, por isso devemos ser gratos a Deus. Ser grato a Deus é reconhecer o Seu cuidado em nós, tanto a sua bondade quanto a sua fidelidade. Não ser grato a Deus reflete a nossa imoralidade, como o próprio Paulo disse: Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu” (Rm 1.21). Glorificar a Deus é reconhecer a majestade e dignidade de Sua pessoa. Dar graças a Deus é reconhecer a generosidade de Suas mãos em suprir-nos e cuidar de nós. Se a nossa vida não é de gratidão a Deus, nós, possivelmente, estamos servindo a outro deus que não é o Deus Todo Poderoso.

B) Contentamento

De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento.” - 1 Timóteo 6.6

O contentamento é uma forma de mostrar que o coração está centrado em Deus. Pois, quando o pecador redimido entende realmente que foi alcançado pela graça de Deus, sem a qual não poderia nem viver neste mundo feito por Ele, tal pecador se contenta com aquilo que Deus lhe deu. Agora, quando estamos descontentes com algo, isso expressa a nossa ingratidão com Deus, passando a viver pelas obras e achando que merecemos mais do que recebemos. Um espírito pobre prestigia as riquezas do mundo estando descontente. Mas uma alma viva pela graça de Deus flui o contentamento, reconhecendo que não recebe o que realmente merece, mas diariamente recebe aquilo que não merecia.

C) Humildade

Porque todo o que se exalta, será humilhado; mas o que se humilha, será exaltado.” - Lucas 18.14

Humildade não significa que temos que negar o que há de bom em nós, mas sim, entender que o que há de bom em nós só existe porque isso é devido à graça de Deus. A humildade não é somente recomendada por Deus (Is 57.15; 66.1,2), como também, a humildade foi exibida plenamente em Seu Único Filho: “E, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente ate a morte, e morte de cruz” (Fp 2.7,8). Sendo assim, quando olhamos para a graça de Deus temos que ter em mente o que disse o apóstolo: Porque, quem te faz diferente? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?” (1Co 4.7). Toda habilidade e toda vantagem que temos vem do próprio Deus e foram nos dada para servimos a Deus, e não nos gloriarmos naquilo que não merecíamos.

D) Paciência

Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de… longanimidade.  - Colossenses 3.12

A paciência na Bíblia é muitas vezes retratada como longanimidade (tardio em irar-se). Todas as vezes que não somos pacientes nós estamos mostrando que não merecíamos a longanimidade de Deus. Pois, Deus sendo eternamente justo, tinha todas as razões para que nos lançássemos ao inferno. Portanto, para um crente que reconheceu a graça de Deus em sua vida ele buscará a todo momento essa paciência com seu próximo, pois a paciência é acompanhada da unidade, carinho e amor (Ef 4.1-3).

E) Perdão

… perdoando-vos uns aos outros.” - Colossenses 3.13

O perdão está acompanhado da paciência, porque se nós formos pacientes, saberemos perdoar. Porque, este pecador redimido entende que Deus foi longânimo e perdoador. Pois, éramos fortes candidatos ao inferno, mas Deus nos perdoou de toda iniquidade e continua nos perdoando. Logo, a oração do Pai Nosso retrata bem o perdão de Deus em nossas vidas quando diz: E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12). Se nós entendemos de fato a graça de Deus em nossas vidas, nós perdoaremos o nosso próximo que erra da mesma forma que nós.

Conclusão

A graça de Deus está em nossas vidas desde o momento em que Deus permitiu que mais um pecador nascesse nesta criação feita por Deus. A nossa concepção foi por causa da graça de Deus, todo o trabalho que o médico teve em conduzir o parto foi pela graça de Deus que nos atingiu. A nossa vida familiar, no trabalho e/ou na igreja é por causa da graça de Deus. Se não fosse a graça de Deus não teria a mínima graça. A compreensão desta graça que Deus concede, nos ajuda a entender o tamanho deste Deus e como Ele é bom, pois Deus age em todas as coisas para a Sua própria glória, até por meio de algumas coisas que não entendemos, Deus age graciosamente.

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Notas:
[1] HORTON, Michael. Bom demais para ser verdade: encontrando esperança num mundo de ilusão. Tradução: Elizabeth Gomes. São José dos Campos [SP]: Editora Fiel, 2013, p. 109.
[2] Essa divisão foi proposta pelo escritor Jerry Bridges em seu livro Graça que transforma. Tradução: Elizabeth Stowell Charles Gomes [SP]: Cultura Cristã, 2007, p.194

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A Reforma Protestante - Uma Introdução ao Contexto Histórico e aos Cinco Solas

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Por Thomas Magnum


Ao falarmos da reforma protestante estamos refletindo historicamente sobre um momento importantíssimo para a igreja cristã e para todo desdobramento social, cultural e político do século dezesseis e os anos subsequentes. Verdade é que, se não tivermos a devida compreensão do contexto da reforma, nosso estudo ficará incompleto e deficiente. Quando olhamos panoramicamente sobre tudo que precedeu a reforma teremos em foco a soberania de Deus e sua providência; trazendo seu povo novamente a sua vontade e a fidelidade a sua Palavra. Da mesma forma que Deus levantava nações e reis para julgarem seu povo no antigo Israel, assim o Senhor fez entre o terceiro e o décimo sexto séculos. A reforma não trouxe somente uma restauração doutrinária à igreja, trouxe também uma cosmovisão alargada do reino de Deus, a reforma modificou a sociedade, a política, as artes, a literatura, os relacionamentos familiares, as ciências, a filosofia e a história. 

Observaremos alguns fatores que contribuíram para o desdobramento da reforma protestante no século dezesseis. Na verdade, Deus estava preparando o mundo para a restauração de sua igreja. Partindo do princípio reformado da soberania de Deus, entendemos claramente que Deus escreve a história, e a doutrina da providência é a evidência disso, da encarnação dos decretos do Altíssimo. Dentre muitos fatores que moveram a reforma temos a questão religiosa, a questão política, a questão moral e a filosófica ou cientifica.

A Questão Religiosa

Desde o terceiro século, com Constantino a igreja começou a se meter em um sincretismo desmedido. A idolatria invadiu o culto sagrado, as imagens tomaram lugar nos templos, a pregação fora substituída por discursos vazios e sem vida. A eucaristia foi maculada pelo entendimento errado e chamada de transubstanciação, a infalibilidade papal fora outorgada, a tradição da igreja foi posta em mesmo grau de autoridade da Bíblia Sagrada. Os crentes não participavam da eucaristia, mas, somente os sacerdotes ordenados, que davam ao povo somente a hóstia. O povo não tinha a Bíblia em sua própria língua, mas ouvia os padres lerem em latim. O povo foi privado das grandes verdades do evangelho, que foi substituído por doutrinas de homens caídos. Todo esse contexto trouxe para a igreja degradação espiritual e moral.

A Questão Moral 

Por muitos anos os imperadores escolheram os papas da igreja, mas quando Hildebrando assumiu o papado a coisa mudou e muito, ele foi o maior dos papas, dele veio muitas ideias posteriores à autoridade papal e ao colégio dos clérigos da igreja. A autoridade papal foi exaltada com Hidelbrando.[1] A partir daí a figura do papa tornou-se iconoclasta. A autoridade dos papas agora era maior que a dos imperadores. O papa podia colocar alguém no trono e tirá-lo de lá. Esse, requerido pelos lideres maiores da igreja, que reivindicavam a sucessão de Pedro na liderança da igreja. O resultado foi que tais homens alimentavam sua cede de poder e riquezas, muitos papas eram muito ricos e tinham filhos, tinham concubinas, eram homossexuais. Instaurou-se na igreja uma queda moral sem limites e controle.

A Questão Política

A igreja começou a se esmerar no acumulo de bens, a desenfreada ambição dos papas em juntar riquezas levaram a igreja a se tornar literalmente a grande prostituta do sagrado. Transações políticas, alianças, recebimento de quantias de dinheiro enormes dos poderosos da época que temiam o poder da igreja, até chegarmos nas indulgências. A compra de perdão dos pecados e a diminuição do tempo de parentes no purgatório. A figura de Tetzel foi importante nesse período.[2] 

A Questão Filosófica e Cientifica 

Entre os séculos XIV e XVII ouve a ascensão do renascentismo, que era uma reforma ideológica tanto nas artes, filosofia e ciência. Esse fator também contribuiu poderosamente para a insatisfação do povo contra os dogmas da igreja católica romana, quando irrompe a reforma todos esses fatores listados acima contribuíram e prepararam o espirito da época para o que ocorreria em seu clímax com Lutero.[3]

Os Pré-Reformadores

A igreja sempre teve homens e mulheres que desejavam a reforma espiritual, e lutavam para isso. Alguns nomes que podemos citar é Francisco de Assis, Isabel a católica e mais a frente com John Huss e John Wicliff que traduziu a Bíblia para o inglês, os dois últimos foram mortos por causa da sua pregação contra os abusos da igreja.[4]

O Surgimento do Papado

O termo Papa era comum no mundo antigo segundo o historiador da igreja Justo Gonzales, existem muitos documentos antigos que atribuem o termo Papa (papai) a bispos eminentes na idade das trevas, ao papa Cipriano de Cartago, ou ao papa Atanásio de Alexandria. No mundo antigo existiam cinco grandes patriarcados, estes eram:

               • Jerusalém
               • Antioquia
               • Alexandria
               • Constantinopla
               • Roma

Os patriarcas dessas cidades exerciam poder religioso e político, dentre todas elas Roma se destacava, tanto pelo poder do patriarca e por ser a capital do império. O argumento da igreja Católica Romana para a existência de um bispo universal é baseado na estadia de Pedro em Roma, e a utilização da fala de Jesus dizendo: “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja...

As Reivindicações da Reforma

Sola Scriptura – Em contra partida ao ensino da igreja Católica Romana, a reforma afirmava que somente a escritura era a autoridade da igreja (Sola Scriptura), que não era o poder do papa ou a tradição da igreja que eram as maiores autoridades, mesmo ao lado da escritura, a reforma afirmava categoricamente Somente a Escritura é a autoridade da igreja, e por ela a igreja é governada.

Ref: II Tm 3.16,17; Gl 1.8; 1 Jo 5.9

Sola Gratia – A reforma afirmava enfaticamente que somente pela graça o homem poderá ser salvo dos seus pecados, somente Deus, graciosamente agindo no homem, retira dele o coração de pedra e lhe dá um coração de carne. A igreja Católica afirmava que a igreja era a doadora da salvação, o grande levante de Lutero em relação às indulgências que João Tetzel estava apregoando, portanto o compromisso reformado era escriturístico, o que a Palavra dizia sobre a salvação. 

Ref: Ef 2.8; Ez 36.26; Jr 31.31-33

Sola Fide – Ao contrário do que o catolicismo professava, a reforma vindicava que somente pela fé o homem será salvo. A Confissão de Westminster expressa bem o pensamento dos reformadores: 

A Graça da fé, por meio da qual os eleitos são habilitados a crer para a salvação da sua alma, é obra que o Espírito de Cristo faz no coração deles, e é ordinariamente operada pelo ministério da Palavra; por esse ministério, bem como pela administração dos sacramentos e pela oração, ela é aumentada e fortalecida. CFW

Ref: Hb 10.39; Rm 1.16,17; Jo 6.54-56

Solus Cristhus – Somente Cristo é o mediador entre Deus e os homens, somente através de seu sacrifício substitutivo e em seus méritos os homens serão salvos, a igreja não é medianeira, os santos não são intercessores isso cabe somente ao cordeiro de Deus.
Declaração de Savoy – Aprouve a Deus, em seu eterno propósito, escolher e ordenar o Senhor Jesus, seu filho unigênito, para ser o mediador entre Deus e o homem, Profeta, Sacerdote e Rei, o Cabeça e Salvador da igreja, o herdeiro de todas as coisas e o juiz do mundo; deu-lhe desde toda a eternidade, um povo para ser sua semente e para, no tempo devido, ser por ele remido, chamado, justificado, santificado, e glorificado.

Cristo é o único cabeça da igreja, Declaração de Savoy:
Não há outra Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; nem pode o Papa de Roma, em qualquer sentido, ser a cabeça dela, senão que ele é aquele Anticristo, aquele homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e contra tudo que se chama Deus, e a quem o Senhor aniquilará pelo esplendor de sua vinda.

Ref: Jo 1.29; 1 Pe 1.19-20; 1 Tm 2.5; Ef 5.23

Soli Deo Gloria – Somente a Deus a Glória na igreja e em toda criação, o grande motivo da existência da igreja é  a glória de Deus.

Savoy diz:
Há somente um Deus, vivo e verdadeiro, o qual é infinito em seu ser e perfeição, um espírito puríssimo, invisível, sem corpo, partes ou paixões, imutável, imenso, eterno, incompreensível, onipotente, sapientíssimo, santíssimo, totalmente livre, totalmente absoluto, operando todas as coisas segundo o conselho de sua própria imutável e justíssima vontade, para sua própria glória, amantíssimo, gracioso, misericordioso, longânimo, riquíssimo em bondade e verdade, perdoando a iniquidade, a transgressão e o pecado; galardoador daqueles que o buscam diligentemente; e no entanto justíssimo e mui terrível em seus juízos, pois odeia todo pecado, e de modo algum inocenta o culpado.

Ref: Rm 11.33-36


Todos os fatores que acarretaram a reforma protestante estavam nos decretos de Deus, como o mundo foi preparado na plenitude dos tempos para encarnação do verbo, como Deus usou reis de nações ímpias e podemos destacar aqui a Babilônia, como Deus usou Ciro, Senaqueribe e tantos outros para cumprir seus propósitos, assim foi no desembocar da reforma, Deus estave sempre no controle de tudo. 

Ao levantar homens como os reformadores que semelhante aos profetas do antigo testamento, levavam o povo de volta as Escrituras como na história do rei Josias, também lemos algo semelhante no livro Esdras e Neemias, o povo foi trazido de novo à palavra pela palavra e sendo transformados pela palavra. Os efeitos da reforma foram incalculáveis, a graça de Deus era a mensagem central dos reformadores. Por isso devemos refletir nossa postura hoje, em nossa geração.

A igreja em sua grande maioria tem voltado aos pecados de Roma. As indulgências não estão mais nas mãos de Tetzel, estão com mais ênfase nas mãos dos pregadores da prosperidade. As artimanhas de Satanás estão sendo pregadas dos púlpitos de igrejas históricas. O envolvimento de lideres com a maçonaria, com o sincretismo religioso, com as nuanças do inferno. 

A reforma não pode ser esquecida por nós, não podemos desprezá-la, Deus a de requerer isso de nossa geração, nossa teologia não pode somente estar num altar semântico, mas deve ser real, piedosa, confrontadora, verdadeira em sua totalidade. Quem somos nós diante do Deus eterno para manipularmos sua Palavra, haverá um juízo porque há um juiz. Não temos hoje o Papa Leão X que desejava cobiçosamente a construção da Basílica, mas temos pregadores vaidosos, que pregam a teologia reformada, mas seu coração quer a glória, querem ser conhecidos, querem ser elogiados, querem ser alvo de adoração. A arrogância de muitos reformados na atualidade é digna de repúdio, a obra de Deus não depende de homens, depende daquele que fez do nada todas as coisas. 

Deus não precisa de ninguém, nem de nada para realizar sua vontade, Ele fala e acontece. Que as motivações da reforma sejam as nossas, que a glória de Deus e somente dele seja nosso desejo. Deus não nos chamou para levantarmos impérios religiosos, Ele nos chamou por sua graça, para louvor da sua glória. 

Soli Deo Gloria 

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Notas:
[1] História da Igreja Cristã, Nichols – Ed. Cultura Cristã
[2] História da Igreja Cristã, Nichols – Ed. Cultura Cristã
[3] Uma História do Cristianismo, Latourett – Ed. Hagnos
[4] A Era dos Reformadores, Justo gonzales – Ed. Vida Nova

Bibliografia Utilizada: 

Declaração de Savoy
Confissão de Fé de Westminster
História da Igreja Cristã, Nichols – Ed. Cultura Cristã
História Ilustrada do Cristianismo, Justo gonzales – Ed. Vida Nova
Uma História do Cristianismo, Latourett – Ed. Hagnos
Dogmática Reformada, Herman Bavinck – Cultura Cristã
Compêndio de Teologia Apologética – François Turretini
Teologia Sistemática, Augustus Hopkins Strong – Hagnos
Teologia Sistemática, Charles Hodge - Hagnos

sábado, 5 de dezembro de 2015

Calvinistas evangelizam?

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Há um mito que circula no meio evangélico que diz que os calvinistas não se preocupam em fazer evangelismo pessoal ou missões. Segundo os expoentes dessa lenda, isso ocorre porque os calvinistas creem na doutrina da predestinação e, uma vez que, segundo sua visão dessa doutrina, Deus já tem os seus eleitos a quem fatalmente irá salvar, não há nenhuma necessidade de evangelizar as pessoas, nem mesmo de orar para que alguém se converta.

Realmente, a soteriologia calvinista defende com unhas e dentes a santa doutrina da predestinação. E isso por uma razão muito simples: poucas doutrinas bíblicas são tão claras como essa. De fato, mesmo representando um atentado contra a orgulhosa lógica humana (Rm 9.19-21), a Bíblia é pródiga em suas afirmações referentes à soberania absoluta de Deus na salvação, que alcança graciosamente quem quer e endurece a quem lhe apraz (Jo 1.13; Rm 8.29-30; 9.18; Ef 1.5). É somente por isso que os calvinistas não abrem mão desse ensino tão controvertido que os torna alvo de constantes acusações falsas.

A questão, então, permanece: essa aceitação da doutrina da predestinação não inibe o trabalho de evangelismo dos calvinistas? Surpreendentemente, a resposta é um enfático não. Aliás, é até o oposto o que acontece! Com efeito, tanto a Bíblia como a história do cristianismo mostram que a doutrina da predestinação tem se constituído num dos maiores incentivos à evangelização do mundo!

Considere-se, em primeiro lugar, o ensino bíblico. De que forma a Escritura destaca a eleição divina como um estímulo ao trabalho de pregação do evangelho? Basicamente, o texto sagrado faz isso de duas maneiras: afirmando que os eleitos de Deus estão espalhados pelas diversas comunidades ao redor do mundo; e ensinando que eles fatalmente atenderão à mensagem das Boas Novas em Cristo.

Jesus foi o primeiro a mostrar essas duas maravilhosas realidades. A certa altura do Evangelho de João, o evangelista conta que o Mestre fez uma intrigante afirmação: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco [isto é, não são de Israel]. É necessário que eu as conduza também. Elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10.16). Em seguida, para mostrar que havia grande distinção entre esse grupo espalhado pelo mundo e as demais pessoas não escolhidas, ele dirigiu-se aos seus oponentes dizendo: “… vocês não creem, porque não são minhas ovelhas” (Jo 10.26). O Senhor ensinou, assim, que ele tem um povo espalhado pelo mundo, que as pessoas que compõem esse povo ainda estão por ser alcançadas, e que elas fatalmente atenderão ao convite da fé. Como um evangelista pode ser desencorajado diante disso?

O Evangelho de João insiste nessas verdades também em seu Capítulo 11. Ali, o evangelista comenta algumas palavras pronunciadas pelo sumo sacerdote, dizendo: “Ele não disse isso de si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los num povo” (Jo 11.51-52). É mais do que claro aqui que Deus tem “filhos” dispersos pelo mundo. Esses “filhos” ouvirão a mensagem da cruz e serão, afinal, reunidos num povo.

Ora, com essas concepções em mente, seria possível um evangelista desanimar? É claro que não! Na verdade, sabendo disso, o missionário trabalhará ainda mais confiante, ciente de que as ovelhas de Jesus, os “filhos de Deus que estão espalhados”, cedo ou tarde, seguirão o Bom Pastor; sim, amanhã ou depois, serão reunidos pelo Pai. Além disso, o obreiro que aceita essas verdades não se sentirá fracassado ou frustrado no ministério quando não crerem na sua pregação. Antes, entenderá que os que a rejeitaram fizeram-no por não serem ovelhas do Senhor e seguirá avante, certo de que as ovelhas com certeza ouvirão e o alvo do Pai de reunir seus filhos num só povo será finalmente alcançado. Poderia haver estímulo maior para o trabalho evangelístico?

Na história de missões, quem primeiro se sentiu estimulado por essas verdades foi o apóstolo Paulo. Isso aconteceu quando ele esteve pregando em Corinto, um foco tenebroso da multiforme religião pagã, centro cosmopolita marcado por excessos de imoralidade e por todo tipo de devassidão. Corinto, talvez fosse, ao mesmo tempo, o maior desafio e o mais terrível pesadelo de qualquer missionário cristão; uma boa desculpa para o abandono do trabalho evangelístico.

Paulo esteve ali em cerca de 50 a.D., por ocasião da sua Segunda Viagem Missionária (At 18.1-18). Logo de início, sua presença e mensagem despertaram a oposição da comunidade judaica local que trabalhou intensamente para dificultar ainda mais a obra missionária em Corinto (At 18.6,12-13). Paulo, porém, não desistiu. Onde o apóstolo encontrou estímulo para continuar sua obra num ambiente tão difícil? A resposta é surpreendente: ele foi incentivado pela doutrina da eleição! O texto bíblico diz que, certa noite, o Senhor apareceu a Paulo numa visão e disse: “Não tenha medo, continue falando e não fique calado, pois estou com você, e ninguém vai lhe fazer mal ou feri-lo, porque tenho muita gente nesta cidade” (At 18.9-10).

Durante os dias do seu ministério terreno, o Senhor havia dito que tinha outras ovelhas que viviam em vários apriscos fora de Israel. Agora, o mesmo Senhor se manifesta a Paulo revelando que muitas dessas ovelhas estavam em Corinto. O apóstolo não devia, portanto, recuar. A realidade de que as ovelhas já estavam ali, somente esperando ouvir a voz do Supremo Pastor, devia incentivá-lo. Elas atenderiam a pregação e seriam salvas. Paulo ouviu isso tudo e permaneceu firme. Foi assim que a santa doutrina da eleição fez o apóstolo perseverar por mais um ano e seis meses no trabalho missionário em Corinto (1Co 18.11).

Cerca de dez anos mais tarde, Lucas escreveu essa e outras histórias de Paulo na obra que recebeu o título de Atos do Apóstolos. Foi, talvez, por perceber que a doutrina da eleição servia como estímulo para a evangelização que Lucas fez questão de frisar, justamente numa obra de história de missões, que os que acolhiam a pregação de Paulo eram somente os que faziam parte do rebanho de Cristo espalhado pelo mundo. “… E creram todos os que haviam sido designados para a vida eterna” (At 13.48), escreveu ele. Vê-se, assim, que o primeiro historiador da igreja aprendeu, por meio de suas pesquisas, que a eleição não somente estimula o trabalho do pregador, mas também garante o seu sucesso.

Conclui-se, assim, que, à luz da Bíblia, a doutrina da predestinação não desencoraja a obra missionária, fazendo exatamente o oposto. Deve-se, agora, observar como, em 2 mil anos de cristianismo, essa doutrina serviu como fonte de ânimo para os sucessivos propagadores da santa fé.

Se o argumento que diz que a doutrina da eleição desestimula a pregação do evangelho não se sustenta à luz da Bíblia, tampouco esse mito pode se manter de pé diante da análise histórica. Com efeito, se o ensino bíblico acerca da predestinação gerasse desmazelo no evangelismo, seus expoentes nada teriam feito em prol da expansão da fé e ficariam fechados dentro de suas igrejas, aguardando sua fatal extinção. No entanto, não é isso que se vê na história. Antes, um zelo ardente por missões moveu os expoentes da doutrina da eleição, conduzindo-os como pioneiros e mártires aos rincões mais distantes do mundo, sempre à procura das ovelhas dispersas que fatalmente ouviriam a voz do Pastor Divino.

O primeiro exemplo vem do próprio Calvino. Em suas Institutas da Religião Cristã, o grande reformador citou Agostinho de Hipona, dizendo:

“Porque não sabemos quem pertença ao número dos predestinados, ou não pertença, assim nos convém tratar que a todos queiramos venham a ser salvos. Assim acontecerá que, quem quer que seja que se nos haverá de deparar, esforcemo-nos por fazê-lo participante de nossa paz. Mas, nossa paz repousará somente sobre os filhos da paz (Mt 10.13; Lc 10.6). Portanto, quanto a nós concerne, deverá ser a todos aplicada, à semelhança de um remédio… A Deus, porém, pertencerá fazê-la eficaz a quem preconheceu e predestinou” (AGOSTINHO DE HIPONA. De correptione et gratia, XIV-XVI. In CALVINO João. As Institutas ou tratado da religião cristã, III:XXIII, 14. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989. Volume III, p. 426).

Calvino, contudo, não somente ensinou essas coisas. Ele também as pôs em prática. Uma prova disso está no fato de que, em Genebra, cidade onde atuou como pastor e estadista, foi criado, após 1545, o Fundo Francês, uma instituição que tinha como propósito central dar apoio material aos franceses pobres ali refugiados por causa da perseguição em sua terra natal. Calvino contribuía prodigamente para esse fundo e é provável que tenha sido um dos seus criadores. Ainda que os objetivos principais da instituição fossem no campo humanitário, é sabido que o Fundo Francês era também usado para fins missionários, sustentando pastores em Genebra que deveriam ser enviados à França.


É também preciso destacar que, em meados do século 16, havia em Genebra 38 tipografias, com cerca de 2 mil empregados, cujo trabalho dominante era imprimir literatura evangélica destinada aos países vizinhos, especialmente a França. Por conta disso, na década de 1540, Paris foi inundada pela literatura produzida em Genebra e as conversões começaram a ocorrer. Isso despertou a atenção e o desagrado do parlamento parisiense, o qual emitiu sucessivas listas de livros proibidos, nas quais eram incluídas quaisquer obras que expusessem ideias calvinistas. As gráficas de Genebra, porém, não paravam de lançar novos títulos, numa velocidade que o parlamento não podia acompanhar. Assim, as listas de livros censurados estavam sempre desatualizadas e as obras de Calvino continuavam a ser vendidas e lidas pelo povo francês.

Além disso, sendo impossível um controle absoluto sobre o comércio de literatura por parte das autoridades de Paris, os livros proibidos procedentes de Genebra eram vendidos no mercado negro. O resultado era que as conversões à fé evangélica não paravam de ocorrer na França. Os registros históricos apontam que, em 1562, dois anos antes de Calvino morrer, existiam pelo menos 1.250 congregações calvinistas naquele país, abrangendo mais de 2 milhões de membros! Foi, certamente, por causa desses extraordinários avanços que a Venerável Companhia de Pastores, outra instituição da Genebra de Calvino, enviou 151 missionários à França só no ano de 1561! (para mais detalhes, veja-se McGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 203-222).

A obra missionária de Calvino também abrangeu a fundação da Academia de Genebra (1559) criada para treinar pastores e suprir a demanda que o crescimento do número de igrejas impunha aos reformadores. Muitos alunos dessa academia eram estrangeiros refugiados (franceses, ingleses, holandeses, italianos e alemães) que, depois de formados, voltavam para seus países de origem ensinando o que ali haviam aprendido. Entre esses alunos esteve John Knox, o grande reformador escocês. Foi assim que a escola fundada por Calvino tornou-se um grande centro missionário, irradiando a fé evangélica para o mundo inteiro.

É preciso ainda lembrar que os primeiros missionários protestantes que chegaram ao Brasil foram enviados precisamente por João Calvino. Eles vieram, a pedido de Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571), com o objetivo de ensinar a fé reformada aos colonizadores franceses do Rio de Janeiro e evangelizar os indígenas. O grupo chegou em março de 1557, mas, menos de um ano depois, foi expulso devido a conflitos doutrinários com Villegaignon. Esses conflitos resultaram na produção da Confissão de Fé da Guanabara (1558), um documento de orientação reformada escrito por cinco calvinistas leigos aprisionados por Villegaignon. Desses cinco, quatro foram estrangulados, pondo fim ao trabalho missionário de Calvino no Brasil (mais informações sobre os calvinistas enviados de Genebra ao Brasil, bem como acerca do conteúdo da Confissão de Fé da Guanabara, veja-se NASCIMENTO, Adão Carlos e MATOS, Alderi Souza de. O que todo presbiteriano inteligente deve saber. Santa Bárbara d’Oeste: SOCEP, 2007. p. 39-48).

No século 17, o Brasil, mais uma vez, foi cenário da atividade missionária calvinista. Isso aconteceu como resultado indireto dos conflitos políticos entre Espanha e Holanda. Movido por esses conflitos, Filipe II, da Espanha, proibiu as relações comerciais entre os holandeses e todas as áreas de dominação espanhola, o que abrangia a América do Sul. Nessa época, a Holanda dominava a distribuição de açúcar na Europa e não podia abrir mão do comércio com a empresa açucareira nordestina. Por isso, em 1621, foi criada a Companhia das Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã, cujo objetivo era a exploração mercantil na América.

A companhia promoveu duas invasões holandesas ao Brasil: uma na Bahia (1624-1625) e outra em Pernambuco (1630-1654). Esta última foi a mais bem sucedida e, para garantir a paz e os seus interesses no Brasil, a companhia enviou um representante, o conde João Maurício de Nassau, que governou o Brasil Holandês de 1637 a 1644.

Maurício de Nassau era crente, membro zeloso e assíduo frequentador da Igreja Cristã Reformada. Seu governo foi brilhante, cobrindo uma área que ia do Sergipe até o Maranhão. Ocorreu, porém, que a Companhia das Índias passou a adotar políticas que desagradavam os senhores de engenho, exigindo o pagamento imediato de empréstimos e impondo certos limites à liberdade religiosa. Quando, então, Nassau pediu demissão de seu cargo, iniciou-se a luta contra os holandeses. A chamada Insurreição Pernambucana (1645-1654) resultou na expulsão dos invasores que passaram a produzir açúcar nas Antilhas.

Foram os holandeses que trouxeram para o Brasil a igreja calvinista. Seu nome oficial era Igreja Cristã Reformada e contava com 22 congregações locais espalhadas pelo Brasil Holandês. Ela adotava confissões de fé calvinistas, além de outros credos ortodoxos antigos, e realizou uma intensa obra missionária, especialmente entre os índios. O primeiro pastor dessa igreja a se envolver com a evangelização dos nativos foi Vincentius Joaquimus Soler. A princípio, ele pregou na aldeia Nassau, no Recife (atual Bairro das Graças) e somente mais tarde, a pedido dos nativos da capitania da Paraíba, dedicou-se à evangelização dos índios. Cabe, porém, a David Doreslaer, cujo trabalho iniciou-se em 1638, o título de primeiro pastor missionário de tempo integral entre os nativos do Brasil.

O trabalho missionário dos calvinistas holandeses cresceu muito, a ponto de, em 1641, ser celebrada a primeira Ceia do Senhor na aldeia do cacique Pedro Poti. Várias tribos pediam que a Igreja Cristã Reformada lhes enviasse pregadores e congregações indígenas foram abertas. Até os antropófagos tapuias pediram o envio de missionários. Infelizmente, nem sempre essas solicitações podiam ser atendidas, até mesmo em virtude da instabilidade decorrente dos conflitos entre Holanda, Espanha e Portugal. Apesar disso, 17% do trabalho pastoral era dedicado aos índios, graças, inclusive, à iniciativa pessoal de vários ministros que viam a pregação aos nativos como parte obrigatória do seu ministério.

Em seu trabalho, os pastores calvinistas ganhavam a confiança dos nativos dando-lhes assistência social (remédios, alimentos, proteção, etc.), traduziam partes da Escritura para o tupi, produziam literatura reformada em português e em tupi, primavam pela educação e formação de professores índios (alguns se tornaram “consoladores” ou evangelistas) e zelavam não somente pelo ensino doutrinário, mas também pelo ideal de santidade que deve acompanhar a fé. De fato, o puritanismo holandês via a Bíblia como norma de fé e prática (norma credendi et agendi) e isso foi transmitido aos índios.

Infelizmente, com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654, a Igreja Cristã Reformada também partiu. Os índios convertidos foram incluídos no “Perdão Geral” promulgado pelos portugueses. Contudo, sem acreditar nesse perdão, os índios membros da primeira igreja evangélica verdadeiramente brasileira fugiram para a Serra de Ibiapaba, no Ceará, a 750 km do Recife. O local tornou-se, então, o que o padre jesuíta Antonio Vieira chamou de “Genebra de todos os sertões do Brasil”, repleta de índios calvinistas que consideravam o catolicismo uma fé falsa.

No mesmo ano da expulsão dos holandeses, os índios da Serra de Ibiapaba enviaram uma pequena delegação a Holanda, suplicando socorro em prol do povo que havia abraçado a fé calvinista. Porém, a Igreja Cristã Reformada viu-se atada pelas negociações de paz entre Portugal e Holanda e não enviou auxílio. Por isso, a igreja indígena morreu. Aos poucos, seus membros foram novamente submetidos a Roma ou massacrados como hereges. Foi assim que terminou um dos capítulos mais belos da história da igreja reformada no Brasil; e esse capítulo prova quão falaciosa é a acusação de que os calvinistas não se importam com a evangelização dos povos sem Deus. (A obra mais completa sobre o tema, escrita em português, é, sem dúvida, a de Franz Leonard Schalkwijk: Igreja e Estado no Brasil Holandês: 1630-1654. São Paulo: Vida Nova, 1989. O autor é pastor reformado holandês e ministrou muitos anos no Brasil, tendo realizado profundas pesquisas tanto aqui como em sua terra natal).

As provas históricas do empenho evangelístico dos calvinistas são inumeráveis. Porém, para concluir esse assunto, é suficiente apontar somente mais dois personagens: George Whitefield e Charles Haddon Spurgeon, sem dúvida os maiores pregadores de todos os tempos, ambos fervorosos expoentes da fé reformada, com sua ênfase na doutrina da predestinação dos santos (Informações mais completas sobre George Whitefield podem ser obtidas em LLOYD-JONES, D.M. Os Puritanos: suas origens e sucessores. São Paulo: PES, 1993).

George Whitefield nasceu em Gloucester, na Inglaterra, em 1714, e morreu em Newbury Port, nos Estados Unidos, em 1770. Ele viveu menos de sessenta anos, mas dificilmente a história poderá mostrar um homem mais zeloso no trabalho de proclamação das Boas Novas aos perdidos. De fato, Whitefield foi o maior pregador da Inglaterra no século 18 e, certamente, um dos mais notáveis evangelistas de todos os tempos. Com certeza, ele foi o principal líder do Grande Avivamento evangélico que varreu a Inglaterra há mais de duzentos anos.

Whitefield começou a pregar em 1736 e, já no ano seguinte, era capaz de reunir grandes multidões em Londres dispostas a ouvi-lo. A ele cabe a honra de ter sido o primeiro evangelista da igreja moderna a pregar ao ar livre, rompendo antigas tradições eclesiásticas em prol da expansão da fé. Whitefield usou essa estratégia pela primeira vez em 1739, motivado pelas terríveis informações que lhe chegaram acerca da vida depravada dos trabalhadores das minas de carvão que viviam numa vila perto de Bristol. A princípio ele pregou ao ar livre para um grupo de cem homens daquela vila, mas seu impacto foi tão grande que logo o número passou para 5 mil, superando mais tarde os 20 mil ouvintes. Aquelas pessoas nunca tinham entrado numa igreja e, mesmo cansadas e sujas em virtude do trabalho nas minas de carvão, não iam para casa, preferindo ficar de pé ouvindo a pregação de Whitefield.

A partir de então e até o fim da vida, Whitefield se dedicou à pregação em lugares abertos, alcançando dezenas de milhares de pessoas tanto na sua terra natal como na Escócia, onde esteve catorze vezes. A partir de 1738, Whitefield fez também diversas viagens aos Estados Unidos a fim de pregar o evangelho ali. Ele morreu durante sua sétima visita àquele país. Sua coragem em atravessar o oceano treze vezes em suas idas e vindas à América, enfrentando todos os perigos que essa viagem representava no século 18, mostra o zelo missionário desse pastor calvinista que, em 34 anos de ministério, pregou cerca de 18 mil sermões!

Proclamando suas mensagens ao ar livre ao longo de toda a vida, Whitefield enfrentava qualquer situação, mesmo as mais difíceis. Frio, calor, chuva e neve, nada disso o impedia de anunciar a Palavra às multidões que, também sob essas condições se ajuntavam para ouvi-lo. Ele pregava cerca de seis vezes por dia e fez isso por mais de três décadas! Não tinha descanso no trabalho, submetendo seu corpo a severas tensões. Foi por isso que, extremamente exausto, após árduos esforços para pregar uma última vez, faleceu em Newbury Port, Massachusetts, com apenas 56 anos de idade.

Ninguém mais do que George Whitefield provou como a fé calvinista move o crente ao evangelismo. Sendo árduo defensor da doutrina da eleição soberana de Deus, ele foi um evangelista incomparável, superando todos do seu tempo no nobre trabalho de alcançar os escolhidos do Senhor. Whitefield pregou para a aristocracia inglesa, para os homens humildes do campo e das minas e para as crianças dos orfanatos, tanto em sua terra natal como em regiões distantes dali. A fé reformada não o desencorajava. Muito pelo contrário. Foi essa fé que se constituiu na base de todo o seu empenho, por décadas a fio, até a morte. Hoje, os que dizem que calvinistas não evangelizam, devem estudar a vida de George Whitefield. Isso, certamente, os fará mudar de opinião!

Uma dramática mudança de opinião acerca do zelo evangelístico calvinista também ocorrerá no crítico da fé reformada que estudar a vida de Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), notável pastor batista inglês conhecido como o “Príncipe dos Pregadores” (sobre a vida de Spurgeon, leia Gigantes da fé, de Franklin Ferreira, publicado pela Editora Vida, páginas 270 a 278).

Mesmo pertencendo a uma família de tradição protestante e sendo criado sob a forte influência de seu avô, um pastor congregacional, Spurgeon só se converteu realmente aos dezesseis anos de idade. Logo no início de sua vida cristã, ele mostrou grande preocupação pelas almas, dedicando-se à distribuição de folhetos, ao ensino na escola dominical e, eventualmente, à pregação. Aos poucos, porém, suas habilidades como comunicador da Palavra de Deus começaram a aflorar e Spurgeon viu sua fama de pregador crescer quando ainda era bem jovem.

Em 1852, ele se tornou pastor e, dois anos depois, assumiu o ministério na Capela Batista de New Park Street, em Londres. Seu desempenho ali como pregador e evangelista atraiu tantas pessoas que as ruas ao redor da igreja logo se tornaram intransitáveis por conta da multidão que afluía para ouvir o jovem pastor. Em pouco tempo, a igreja teve de se mudar para Newington, onde, em 1861, foi construído o Tabernáculo Metropolitano, que abrigava cerca de 12 mil pessoas. O local ficava repleto de homens e mulheres desejosos de ouvir os sermões ardentes de Spurgeon que anunciava o Evangelho com uma paixão e clareza nunca vistas em nenhum outro pregador daqueles dias.

Charles Spurgeon era calvinista convicto e seus sermões são prova cabal desse fato (no Brasil, os sermões de Spurgeon têm sido publicados especialmente pela Editora Fiel e pela PES: Publicações Evangélicas Selecionadas). Defendendo vigorosamente a doutrina da predestinação dos santos e a eleição incondicional, ele foi, ao mesmo tempo, um zeloso evangelista de renome mundial, pregando em diversos países da Europa, tanto em igrejas ou em amplos salões como ao ar livre. Ele pregava de oito a doze vezes por semana e chegou a falar para um público de mais de 23 mil pessoas, no Crystal Palace, em Londres.

Tantas foram as pregações de Spurgeon que, quando seus sermões passaram a ser publicados, a partir de 1855, a obra abrangeu 63 volumes, com mais de 3.500 homilias. Desejoso de que a mensagem de Cristo alcançasse o maior número possível de pessoas, Spurgeon se esforçava para que as publicações dos sermões fossem semanais, revisando ele próprio os textos antes que chegassem ao público. Como resultado dessa imensa obra evangelizadora, Spurgeon batizou cerca de 15 mil pessoas ao longo de quarenta anos de ministério pastoral. Mais tarde, seus sermões foram traduzidos para diversos idiomas, transformando vidas em todo o mundo.

Sempre preocupado com a divulgação da mensagem cristã, Spurgeon também começou um trabalho de treinamento de evangelistas e pastores, o que deu origem ao posteriormente chamado Spurgeon’s College. Essa instituição existe até hoje, adotando a mesma visão do seu fundador e formando evangelistas, missionários e pastores.

Charles Spurgeon adotava uma concepção ortodoxa das Sagradas Escrituras e, por isso, passou a ser fortemente criticado pelos membros liberais da União das Igrejas Batistas da Inglaterra da qual sua igreja fazia parte. Por causa disso, em 1887, ele se desligou da união e, sob severa oposição, viu sua saúde minguar. Spurgeon tinha gota, reumatismo e uma enfermidade crônica degenerativa incurável chamada Doença de Bright. Ele morreu aos 57 anos. Grandes cortejos foram realizados em Londres por ocasião de seu sepultamento no cemitério de Norwood. Naquele dia, 31 de janeiro de 1892, o Senhor tomou para si um dos maiores evangelistas de todos os tempos.

Quem conhece a vida e os sermões de Spurgeon vê quão grande é o impulso que a doutrina da eleição incondicional dá ao evangelismo. Nota-se que, encorajado pelo precioso ensino acerca da predestinação dos santos, os homens de Deus se lançam com maior empenho na busca daqueles que o Senhor escolheu e trazem para o seio da igreja os convertidos verdadeiros em quem a graça de Deus realmente atuou.

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Autor: Pr. Marcos Granconato
Fonte: Igreja Batista Redenção