Romanos 3.23-26
(23) Porque todos pecaram e foram privados da glória de Deus; (24) sendo justificados gratuitamente por sua graça mediante a redenção que está em Cristo Jesus; (25) a quem Deus apresentou como propiciação, por meio de seu sangue, para manifestar sua justiça, visto ter deixado impunes os pecados anteriormente cometidos, de conformidade com sua tolerância; (26) pois tendo em vista, digo eu, a manifestação de sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus
23. Porque não há distinção: Todos pecaram e privados estão da glória de Deus.
Paulo insiste em que todos, sem distinção, carecem de buscar justiça em
Cristo, como se dissesse: “Não há outro caminho para a obtenção desta
justiça. Não há um método para justificar alguns, e outro método
diferenciado para justificar outros, senão que todos igualmente têm de
ser justificados por meio da fé, já que todos são pecadores, e ninguém
tem como justificar-se diante de Deus.” Ele tem por certo que todo mundo
que se aproxima do tribunal divino se conscientiza plenamente de ser
pecador, e se sente aniquilado e perdido sob o senso de sua própria
culpa. E assim faz-se evidente que nenhum pecador pode suportar a
presença de Deus, como se pode ver no exemplo de Adão [Gn 3.8].
O apóstolo ataca novamente com um
argumento extraído do oposto; por esta razão é bom notarmos seu
raciocínio. Visto que todos os homens são pecadores, daí o apóstolo
inferir que todos são deficientes ou desprovidos de todo e qualquer
louvor da justiça. Portanto, à luz de seu ensino, não existe justiça
senão aquela que é perfeita e absoluta. Se porventura existisse aquilo a
que chamam de meia-justiça, então não haveria qualquer
necessidade de privar o homem, completamente, de toda e qualquer glória
por ser ele um pecador. Por isso, a ficção criada por alguns de uma justiça parcial é
suficientemente refutada. Se porventura tivesse base o conceito de que
somos parcialmente justificados pelas obras e parcialmente pela graça de
Deus, então este argumento de Paulo, de que todos se acham privados da
glória de Deus por serem pecadores, careceria de qualquer força.
Portanto, o certo é que não há justiça onde o pecado se faz presente,
até que Cristo elimine a maldição. É precisamente isso o que Paulo está a
declarar em Gálatas 3.10, a saber: que todos quantos se acham debaixo
da lei estão expostos à maldição, e que somos libertados dela somente
através da munificência de Cristo. A glória de Deus significa a
glória que está na presença de Deus, como em João 12.43, onde nos diz
nosso Senhor que amaram mais a glória dos homens do que a glória de
Deus. Assim o apóstolo nos arrebata do aplauso dos palcos humanos e nos
coloca diante do tribunal celestial.
24. Sendo justificados gratuitamente por sua graça.
O particípio do verbo é usado aqui de acordo com o costume grego. Eis o
significado: visto que não é deixado ao homem, intrinsecamente, senão o
fato de que ele perece acossado pelo justo juízo de Deus, por isso é
que todos são justificados gratuitamente pela misericórdia divina. Pois
Cristo vem em socorro das misérias humanas e se comunica com os crentes,
de modo que tão-somente encontrem nele todas as coisas de que carecem. É
provável que não haja na Escritura nenhuma outra passagem que ilustre
de forma tão extraordinária a eficácia desta justiça, pois demonstra que
a misericórdia divina é a causa eficiente; Cristo e seu sangue, a causa material; a fé, concebida pela Palavra [Rm 10.17], a causa instrumental; e a glória, tanto da justiça divina quanto da munificência divina, a causa final.
Com respeito à causa eficiente, o apóstolo diz que somos justificados gratuitamente,
e que somos justificados – o que reforça ainda mais – por sua graça.
Assim, ele usou duas vezes a expressão para que se saiba que tudo vem de
Deus, e nada de nós mesmos. Teria sido suficiente confrontar graça e mérito;
porém, para impedir que entretivéssemos a idéia de uma justiça
truncada, ele firmou ainda mais nitidamente seu significado por meio de
repetição, e assim reivindicou para a misericórdia de Deus,
exclusivamente, todo o efeito de nossa justiça, a qual os sofistas
dividem em duas partes e mutilam, com o fim de não se sentirem
constrangidos a admitir sua própria pobreza.
Mediante a redenção que está em Cristo Jesus. Esta é a causa material, a saber: o fato de que Cristo, mediante sua obediência, satisfez o juízo do Pai; e ao tomar sobre si nossa causa,
livrou-nos da tirania da morte, por meio da qual fomos mantidos em
cativeiro. Nossa culpa é cancelada pelo sacrifício expiatório por ele
oferecido. Aqui, novamente, a ficção daqueles que fazem da justiça uma
qualidade [humana] recebe sua melhor refutação. Se somos considerados
justos diante de Deus em razão de sermos redimidos mediante um preço,
certamente recebemos de outra fonte o que não possuímos. O apóstolo,
logo a seguir, explica mais claramente o valor e objetivo desta
redenção, ou, seja: ela nos reconcilia com Deus, pois ele chama Cristo
de propiciação ou (prefiro usar a alusão a uma figura mais antiga) propiciatório.
O que ele pretende é que somos justos somente até onde Cristo
reconcilia o Pai conosco. Mas devemos agora examinar o que ele diz
25. A quem Deus apresentou como propiciação. O verbo grego, προτίθεναι, às vezes significa predeterminar e às vezes apresentar.
Se porventura preferirmos o primeiro significado, então Paulo está a
referir-se à graciosa misericórdia de Deus em haver designado Cristo
como nosso Mediador a fim de reconciliar o Pai conosco por meio do
sacrifício de sua morte. Não é um encômio comum da graça de Deus o fato
de que, de seu próprio beneplácito, ele encontrou uma forma pela qual
pudesse remover nossa maldição. Na verdade, tudo indica que a presente
passagem concorda com aquela que se acha em João 3.16: “Deus amou o
mundo de tal maneira, que deu seu Filho unigênito.” Entretanto, se
adotarmos o segundo significado, o sentido será o mesmo, a saber: que, a
seu próprio tempo, Deus o apresentou, a quem designou Mediador.
Há, creio eu, na palavra ἱλαστήριον, como já disse, uma alusão ao
antigo propiciatório, pois o apóstolo nos informa que em Cristo foi
exibido em realidade, aquilo que, para os judeus, foi dado
figuradamente. Entretanto, visto que o outro ponto de vista não pode ser
descartado, caso o leitor prefira aceitar o sentido mais simples, então
deixarei a questão em aberto. O significado específico do apóstolo,
aqui, se faz ainda mais evidente se atentarmos para o que ele diz, ou,
seja: que Deus, à parte de Cristo, está sempre irado conosco, e que
somos reconciliados com ele quando somos aceitos por meio de sua
justiça. Deus não nos odeia na qualidade de feituras suas, ou, seja,
pelo fato de nos ter criado como seres viventes, mas o que ele odeia em
nós é a impureza, a qual extinguiu a luz de sua imagem. Quando esta
[impureza] é removida, então ele nos ama e nos abraça como feituras
suas, próprias e puras.
Como propiciação pela fé em seu sangue.
Prefiro esta retenção literal da linguagem de Paulo, visto que, segundo
meu modo de pensar, sua intenção era usar uma única idéia ao declarar
que se reconcilia conosco tão logo pomos nossa confiança no sangue de
Cristo. Porque é pela fé que tomamos posse deste benefício. Ao mencionar
somente o sangue, ele não pretendia excluir as outras partes
da redenção; ao contrário, pretendia incluir tudo numa única palavra, e
fez menção do sangue porque é nele que somos lavados. E assim toda a
nossa expiação é compreendida no ato de se tomar a parte pelo todo.
Havendo uma vez afirmado que Deus nos reconciliou em Cristo, ele agora
adiciona que esta reconciliação é processada através da fé, ao mesmo
tempo que, olhar para Cristo, constitui o principal objetivo de nossa
fé.
Visto ter deixado impunes os pecados anteriormente cometidos. A preposição causal [visto que] é equivalente a por causa da remissão ou com o fim de apagar nossos pecados.
Esta definição ou explicação confirma novamente o que tenho
reiteradamente aludido, ou, seja: que os homens são justificados não
pelo que são na realidade, mas por imputação. Somente ele usa
várias formas de expressão com o propósito de fazer mais evidente que
não há mérito algum inerente em nós concernente a esta justiça. Se a
obtemos pela remissão dos pecados, concluímos que ela se acha além de
nós mesmos; e mais: se a remissão em si é um ato exclusivo da
liberalidade divina, então todo mérito cai por terra.
Pode-se, contudo, perguntar por que o
apóstolo restringe o perdão aos pecados passados. Embora esta passagem
seja explicada de várias formas, penso ser provável que o apóstolo
estivesse pensando nas expiações legais, as quais eram na verdade
evidências da satisfação futura, mas que não possuíam os meios de
aplacar a Deus. Em Hebreus 9.15, temos uma passagem similar, na qual se
declara que a redenção das transgressões que restavam sob o antigo pacto
foi produzida por Cristo. Entretanto, não temos que entender que só as
transgressões daqueles tempos foram expiadas pela morte de Cristo. Esta é
uma idéia completamente sem sentido, a qual alguns extremistas têm
extraído de uma visão distorcida desta passagem. Paulo ensina
simplesmente que, até a morte de Cristo, não fora pago nenhum preço para
satisfazer a Deus, e que isso não fora realizado nem consumado pelos
tipos legais – por isso a verdade fora adiada até que chegasse a
plenitude dos tempos. Podemos dizer mais, que aquelas coisas que nos
envolvem em culpa têm de ser consideradas pelo mesmo prisma, porquanto
só há uma única propiciação para todos.
A fim de evitar inconsistência, alguns
eruditos têm mantido que os pecados anteriores são perdoados, com o fim
de não parecer que se dava permissão para pecar-se no futuro. Sem dúvida
que é verdade que nenhum perdão é oferecido exceto para os pecados já
cometidos, não porque o valor da redenção se extinga ou se perca, caso
pequemos no futuro – segundo o conceito de Novato e seus sequazes –, mas
porque a dispensação do evangelho consiste em pôr o pecador diante do
juízo e da ira de Deus, e em pôr a misericórdia divina diante do
pecador. Contudo, o verdadeiro sentido está no que já havia explicado.
A frase adicional, de que esta remissão teve por base a longanimidade de Deus, significa simplesmente bondade.
Esta serviu para restringir o juízo divino, e o impediu de inflamar-se
para nossa destruição, até que fôssemos finalmente recebidos em seu
favor. Não obstante, para não parecer que esta idéia foi posta aqui à
guisa de antecipação com o fim de evitar-se a objeção de que esta graça
surgiu somente em última instância, Paulo nos instrui que isso constitui
uma evidência da longanimidade [divina]
26. Tendo em vista a manifestação de sua justiça.
A reiteração desta cláusula é enfática e revela a intenção deliberada
do apóstolo, visto que a mesma era muito necessária. Não há dificuldade
maior do que persuadir alguém a privar-se de toda honra e atribuí-la a
Deus; mesmo assim, o apóstolo intencionalmente menciona esta nova
demonstração da justiça divina, visando a que os judeus abrissem seus
olhos para ela.
No tempo presente. O
apóstolo, corretamente, aplica ao período em que Cristo se revelou o que
existira em todos os tempos, pois Deus manifestou publicamente em seu
Filho o que anteriormente fora conhecido de forma obscura e em meio às
sombras. Desta forma, a vinda de Cristo se deu no tempo do beneplácito
divino e no dia da salvação [Is 49.8; 2Co 6.1,2]. Deus, em todas as
épocas, havia dado provas de sua justiça; mas, ao nascer o Sol da Justiça,
a mesma [justiça] despontou com maior resplendor. Portanto, observemos
bem a comparação entre o Velho e o Novo Testamentos, porque a justiça de
Deus só se revelou claramente no tempo em que Cristo apareceu.
Para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.
Esta é uma definição daquela justiça que, como disse Paulo, foi
revelada no tempo em que Cristo se manifestou, e que, segundo nos
ensinou no primeiro capítulo, se fez conhecida no evangelho. Ele afirma
que ela consiste de duas partes: a primeira consiste em que Deus é
justo, não propriamente um entre muitos, mas o único que
possui inerentemente toda a plenitude da justiça. Ele recebe o pleno e
perfeito louvor que só a ele é devido, como o único que detém o nome e a
honra de ser justo, ao mesmo tempo em que toda a raça humana se acha
condenada por sua injustiça [inerente]. A segunda parte refere-se à
comunicação da justiça, pois Deus de forma alguma oculta suas riquezas
em seu Ser, senão que as derrama sobre todo o gênero humano. A justiça
divina, pois, resplandece em nós na medida em que Deus nos justifica por
meio da fé em Cristo, pois este haveria sido dado em vão, para nossa
justiça, caso não o usufruíssemos, por meio da fé. Segue-se disso que
todos os homens, inerentemente, são injustos e estão perdidos, até que o
remédio celestial lhes seja oferecido.
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