Já deu pra sentir qual a trama Quando eu nasci já tinha calor (...) Quando eu nasci tinha, sim senhor, Águia, paturi, camelo, condor E as águas do Amazonas, os ratos, as rãs, ratazanas Quando eu nasci já tinha terror
(Itamar Assumpção, "Já deu pra Sentir", 1980)
Hoje é dia de ter memória, de ter esperança e medo, prudência e coragem, de resistirmos aos usurpadores de sempre e ao poder avassalador das picuinhas
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Hoje é dia de ter memória. De lembrar que essa democracia (esse arquipélago de democracia) foi conquistada de forma dramática, entre heróis e cadáveres. De recordar que usurpadores cobram caro. Que o que vem aí não é uma revolução, mas uma reação de nossas elites a uma terrível ameaça: a de que ela não seja a protagonista. De lembrar que tudo pode ser pior. Que não temos as barbas do Estadão e a cafonice da Fiesp. Que não precisamos de um pajem, de um Paulo Skaf, de uma paulocracia.
Hoje é dia de esperança. Não de uma esperança absoluta, maiúscula, rumo a uma sociedade igualitária, justa, mas ao menos uma esperança de que não haja retrocesso. De que sigamos aos trancos, sem cair no barranco do casuísmo. Nas ruas, brasileiros que não aceitam entregar este país ao PMDB, sem votos, em nome de um pato. Em nome do governo, do PT? Muitos de nós, não. Em nome de muito mais que isso: da rejeição das subtrações. Do princípio de que não podem sequestrar nossa soma.

Hoje é dia de medo. Medo de que a escolha da Praça da Sé não tenha sido a melhor possível, como o palco de manifestação em nossa capital econômica. Dia de cautela em relação a sabotadores, pois o entorno da praça é um convite para ações pontuais de milicianos e fardados. É dia de temer, sim, armadilhas. Pois os fascistas se empoderaram em poucas semanas, organizaram-se. E têm um combustível incrível a seu favor: o ódio. Manipulações grosseiras, o apoio explícito da imprensa – e o ódio.
Hoje é dia de ter prudência e de se ter coragem. Originalmente, aliás, a palavra prudência não tinha nenhuma conotação oposta à coragem. Muito pelo contrário. Era uma virtude intelectual (Aristóteles), tão nobre quanto a sabedoria (Heráclito). Significava a disposição de decidir o que é bom ou ruim. Não apenas precaução diante dos perigos, como é vista hoje, mas, como definiu Santo Agostinho, “o amor que separa com sagacidade aquilo que é útil do que é prejudicial”. E não temer. Não Temer.
Hoje é dia de sentir. De sentir a nossa trama. Quando nascemos, dizia Itamar Assumpção, já tinha ratos, rãs e ratazanas. E já tinha o terror. Nada menos que o terror. Hoje é dia de discernir, portanto.
De decidir se queremos abraçar picuinhas, causas menores ou intermediárias, ou algo maior – mesmo que seja dolorido, mesmo que tenhamos de lutar contra o rancor. Não por ninguém poderoso, por qualquer um que também tenha nos esquecido. Mas por nós, exatamente por nós. Por outra trama.
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