Nota do tradutor:
esse texto revela detalhes cruciais dos enredos de duas das principais
obras de Dostoiévski: “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”.
Este ano marca um século e meio desde que o grande romancista russo Fiódor Dostoiévski presenteou o mundo com Crime e Castigo (1866). Como é típico de seus romances, Crime e Castigo
não é o que se pode chamar de uma leitura empolgante ou animada. Ele
tem, suponho, um “final feliz”, mas exige muita dor até chegar lá, e até
mesmo o final é doloroso. Afinal de contas, trata-se de um romance
russo.
Raskolnikov, o protagonista, é um
estudante pobre e melancólico que passa tempo demais vivendo em seu
próprio mundo. Ele ressente-se do mundo em torno dele, considerando-se
um ser humano superior que não deve ser constrangido pelas preocupações
éticas da massa. Julga-se um grande homem, um benfeitor, um líder
carismático.
Convencido de sua superioridade sobre as
leis de Deus e do homem, Raskolnikov assassina brutalmente um
penhorista e sua irmã com o propósito de roubar-lhes o dinheiro, mas, em
última instância, porque acha que tem o direito de fazê-lo. No tempo
devido, contudo, ele descobre que não pode enganar tão facilmente a sua
consciência. Ele confessa o crime e é exilado para Sibéria, mas lá,
acompanhado pela religiosa Sonia, encontra paz e perdão.
Crime e Castigo é, com justiça,
aclamado por sua profundidade psicológica e realismo, mas existe outra
razão para a sua fama que o torna leitura obrigatória, especialmente
para cristãos preocupados com os efeitos devastadores do relativismo
moral no mundo moderno. Exatamente como Alfred Lord Tennyson, em seu
poema épico In Memorian (publicado em 1850, mas cuja maior
parte foi escrita nos anos 1830) lutou com as implicações da seleção
natural darwiniana mais de uma década antes da publicação de A Origem das Espécies (1859), Dostoiévski também, em Crime e Castigo, expôs os perigos e desilusões da teoria do übermensch (super-homem) de Nietzsche mais de vinte anos antes de este ter introduzido tal figura no mundo em Assim Falou Zaratustra (1883).
O Superman de Nietzsche
Segundo Nietzsche, o übermensch
(palavra alemã para super-homem) é alguém que encontra dentro de si a
coragem para libertar-se das cadeias da moralidade da classe-média – os
padrões morais e éticos que nos foram “impostos” pela religião.
Considerando que Marx repudiaria a religião como o “ópio do povo”,
Nietzsche viu-a como um ética escrava, um instrumento usado pelos fracos
para controlar os fortes.
Sem temer os códigos religiosos e superstições, o übermensch
supera tais estruturas artificiais – move-se além do bem e do mal –
para afirmar o seu desejo de poder. Somente um indivíduo que se liberta
dessas estruturas pode conduzir a sociedade rumo a um futuro glorioso.
Embora não seja totalmente justo culpar Nietzsche por Hitler, suas
teorias forneceram ampla justificativa para líderes totalitários de
todos os tipos políticos esconderem seus atos de injustiça sob a
aparência de instrumentos para o avanço da civilização.
Em Raskolnikov, Dostoiévski nos presenteia com o que seria um superman
nietzscheano, alguém que não crê que as leis se aplicam a ele, embora
certamente espere que os outros as sigam. O fato de ele sentir a
necessidade de justificar suas ações para si mesmo prova que ele é um
ser ético em quem as reivindicações de moralidade estão vinculadas. Ele
pode considerar-se imune à punição legal, mas não pode escapar de seu
próprio juiz interno: a consciência que Deus colocou em todos nós.
Raskolnikov sabe que cometeu um crime, e o conhecimento disso exige a
existência de um padrão sobrenatural que não é nem relativo nem
artificial.
Assim como a dor indica algo que está
debilitado em nosso corpo, a culpa indica algo que está debilitado em
nossa alma. Mesmo enquanto tenta convencer-se de seu status de
super-homem, Raskolnikov é profundamente atingido pela culpa e pelo
remorso. Um terapeuta freudiano moderno provavelmente lhe diria que o
problema são os seus sentimentos de culpa, não ele. A realidade de sua
culpa está no fato de que ela desmente o relativismo moral, a falsa
crença de que o homem pode viver, fazer escolhas e prosperar em um mundo
além do bem e do mal.
Ideias resultantes
É claro, para mim, que Dostoiévski viu
como parte de sua missão como romancista advertir-nos contra a tentação
satânica daquilo que se tornaria conhecido como o super-homem
nietzscheano.
Digo isso porque, 13 anos após Crime e Castigo, ele começou Os Irmãos Karamazov, uma obra-prima que refuta o übermensch de uma maneira que nenhum tratado filosófico ou teológico poderia esperar fazer.
Fiódor Karamazov, um louco depravado e
estúpido, é o pai de três filhos que incorporam, respectivamente, os
lados físico, intelectual e espiritual do homem: Dmitri, um soldado
impetuoso e impulsivo; Ivan, um intelectual excessivamente racional que
rejeita a fé em Cristo; e Aliócha, um monge piedoso que tenta ajudar seu
pai e irmãos atormentados.
Durante o curso do romance, Fiódor é
morto, e a suspeita recai sobre o cabeça-quente Dmitri. No final,
contudo, descobrimos que Fiódor foi morto não por um de seus filhos
legítimos, e sim por um ilegítimo, o bastardo Smerdiakov. Essa revelação
surpreende a todos, incluindo o leitor, mas a ninguém mais que a Ivan.
Perceba: por muitos anos o grotesco
Smerdiakov foi um discípulo do niilista Ivan. Ivan ensinou-lhe como as
coisas são e que não pode haver justiça ou verdade no mundo; ao
contrário, uma vez que Deus está morto, tudo é permitido. Para Ivan,
essa visão nietzscheana da moralidade como puramente relativa e
artificial não passa de um jogo intelectual. De fato, ele sofre de
angústia, mas não vê necessidade de colocar suas teorias acadêmicas em
prática.
Com Smerdiakov não foi assim.
Idolatrando o seu meio-irmão, ele toma tudo o que Ivan diz como a
verdade do evangelho e constroi a sua própria visão de mundo distorcida
em torno dele. Se Ivan está certo e a moralidade é meramente relativa,
então por que Smerdiakov não deveria se comportar exatamente como
Raskolnikov em Crime e Castigo? Ou seja, por que ele não
deveria cometer um crime para o seu próprio bem? Se ele não está
limitado por qualquer padrão moral ou código ético, o que irá impedi-lo
de matar o pai que ele detesta?
O nietzscheano moderno que lê Os Irmãos Karamazov
provavelmente irá consolar-se ao concluir que Smerdiakov deturpou e
perverteu o niilismo de Ivan. Mas não é assim que Ivan recebe a
confissão orgulhosa e sem remorsos de Smerdiakov de como e por quê ele
matou seu pai. Ivan vê que suas teorias não são apenas defeituosas; elas
são falsas, más e intrinsecamente destrutivas.
Dostoiévski obriga Ivan a ver os frutos de suas crenças, a ver com o que o verdadeiro übermensch
se parece – não belo, trágico e nobre (como Napoleão no exílio), mas
vil, mesquinho e grotesco. Como resultado de seu autoconhecimento, Ivan
abandona o seu ateísmo e abraça o Deus que outrora havia rejeitado. As
ideias, ao que parece, têm consequências.
Não livres da queda
Nossa era pode julgar-se radicalmente
democrática, mas não estamos livres de cair na retórica enganosa e nas
promessas utópicas do übermensch. Pelo contrário, não estamos
livres de nos tornarmos um. Então, tomemos cuidado e prestemos atenção
às advertências de Dostoiévski, que era intuitivo o suficiente para ver
os perigos por trás de uma teoria que Nietzsche iria propor em breve.
Há, em cada um de nós, um Raskolnikov ou Smerdiakov presunçoso, mesquinho e ressentido lutando para sair.
Louis Markos é professor de inglês e acadêmico residente na Houston Baptist University. É autor de From Achilles to Christ (IVP Academic, 2007), On the Shoulders of Hobbits: The Road to Virtue with Tolkien and Lewis (Moody, 2012), e From A to Z to Narnia with C. S. Lewis (Lampion, 2015).
Esses livros, junto com seu romance The Dreaming Stone (no qual seus filhos tornam-se parte da mitologia grega e aprendem que Cristo é o mito tornado fato), estão disponíveis em sua página na Amazon
extraído: http://voltemosaoevangelho.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário